A ilusão musical
Daniel Levitin • 16 de setembro de 2021

A Ilusão Musical
on 4 de julho de 2012 at 00:51
por: Daniel Levitin
Imagine que você colocou uma fronha de travesseiro bem esticada na boca de um balde, e várias pessoas começam a jogar ali, de diferentes distâncias, bolas de pingue-pongue. As pessoas podem jogar quantas bolinhas quiserem e com qualquer freqüência. O seu trabalho é adivinhar, apenas olhando o movimento da fronha para cima e para baixo, quantas pessoas estão ali, quem são elas e se elas estão se aproximando de você, se distanciando ou estão paradas. Essencialmente, este é o problema com o qual o seu sistema auditivo precisa lidar quando usa o tímpano como a porta de entrada da audição.
O som é transmitido através do ar por moléculas que vibram em certas freqüências. As moléculas bombardeiam o tímpano, fazendo com que ele se agite para dentro ou para fora, dependendo da força com que batem no tímpano (relacionada ao volume ou à amplitude do som) e da velocidade na qual estão vibrando (relacionada àquilo que chamamos de altura [grave ou agudo]). Mas não há nada na estrutura das moléculas que possa dizer ao tímpano de onde elas vieram, ou qual delas está associada com qual objeto. Vozes podem estar misturadas a outras vozes ou ao som de máquinas, do vento, ou de alguém pisando no chão. Na maioria das vezes o som recebido pelo tímpano é incompleto ou ambíguo. Então, como o cérebro descobre, no meio dessa mistura de moléculas batendo contra uma membrana, o que está acontecendo no mundo?
A maioria das pessoas presume que o mundo é exatamente como mostra sua percepção. Entretanto, experimentos têm forçado pesquisadores, inclusive a mim mesmo, a confrontar a realidade de que as coisas não são bem assim. Aquilo que realmente ouvimos é o final de uma longa cadeia de eventos mentais que cria uma impressão – uma imagem mental – do mundo físico. Em nenhum lugar isso é mais impressionante do que na ilusão perceptiva na qual nosso cérebro impõe estrutura e ordem em uma seqüência de sons para criar o que chamamos de música.
A cadeia de eventos mentais começa com um processo chamado de “extração de características”. O cérebro extrai da música características básicas e de baixo nível, usando redes neurais especializadas que decompõem o sinal sonoro em informações relacionadas à altura, timbre, localização espacial, intensidade, reverberação do ambiente, duração tonal e o tempo de ataque para diferentes notas (e para componentes tonais diferentes). Esse processamento em baixo nível de elementos básicos ocorre nas partes periféricas e filogenéticas de nossos cérebros. Depois, ocorre um processo chamado de “integração”. Partes superiores do cérebro – mais freqüentemente o córtex frontal – recebem as características básicas das regiões inferiores e trabalham para integrá-las em uma percepção completa.
O cérebro enfrenta três dificuldades na “extração de características” e na “integração”. Primeiro, a informação que chega aos receptores sensoriais é indiferenciada em termos de localização, fonte e identidade. Segundo, a informação sonora é ambígua: diferentes sons podem gerar padrões de ativação similares ou idênticos ao atingirem o tímpano. Terceiro, a informação sonora raramente é completa. Partes do som podem vir encobertas por outros sons, ou se perderem. O cérebro tem que fazer um cálculo estimado do que realmente está acontecendo no mundo. Assim, a percepção auditiva é um processo de inferência. E quando a origem do som é musical, as inferências incluem muitos fatores, que vão além dos próprios sons: o que veio antes deste trecho musical que estamos ouvindo; o que nos lembramos que virá em seguida, o que esperamos que virá em seguida, se conhecemos o gênero ou o estilo musical; e quaisquer outras informações adicionais que possamos ter, como o resumo que lemos da música, um movimento repentino de um artista ou um cutucão dado pela pessoa sentada ao nosso lado.
Portanto, o cérebro constrói uma representação da realidade, baseada tanto nos componentes do que efetivamente ouvimos, quanto em nossas expectativas do que achamos que deveríamos estar ouvindo. Existem boas razões para que o cérebro funcione assim – um sistema perceptivo que é capaz de restaurar informações perdidas pode nos ajudar a tomar decisões rápidas em situações de ameaça – mas isso não acontece sem desvantagens. As associações cerebrais, integradas nas partes superiores do cérebro, podem nos levar a uma percepção equivocada das coisas, através da reorganização de alguns dos circuitos nos processadores cerebrais inferiores. Isto é, em parte, a base neural para as ilusões perceptivas, como aquela demonstrada pelo psicólogo da cognição, Richard Warren, da Universidade de Wisconsin. Ele gravou uma frase: “O projeto de lei passou pelas duas assembléias legislativas”. Depois cortou da fita uma parte da frase e colocou em seu lugar uma explosão de “barulho branco” (estática), de mesma duração. Praticamente todos que ouviram a gravação alterada disseram que ouviram, ao mesmo tempo, o resto da frase e a estática. Uma proporção grande de pessoas não pôde dizer quando a estática aconteceu, porque o sistema auditivo havia preenchido a parte da frase que estava faltando. Assim, a frase pareceu a eles como se não estivesse interrompida.
Este fenômeno de preenchimento não é apenas uma curiosidade científica. Compositores musicais exploram o mesmo princípio, sabendo que a nossa percepção de uma linha melódica irá continuar, mesmo que partes dela sejam obscurecidas por outros instrumentos. Esse fenômeno também acontece sempre que ouvimos as notas graves de um piano ou de um contra-baixo. Não estamos realmente ouvindo 27.5 ou 35 hertz, porque esse tipo de instrumento é incapaz de produzir energia suficiente para fazer soar essas freqüências ultra graves. Ao invés disso, nossos ouvidos preenchem a informação, dando-nos a ilusão de que a altura é tão grave.
MÚSICA NA MENTE
A atividade musical envolve envolve quase todas as regiões cerebrais conhecidas e quase todos os subsistemas neurais
A audição da música começa com as estruturas subcorticais (abaixo do córtex) – o núcleo cloclear, o bulbo cerebral, o cerebelo – e então se move para cima, para os córtex auditivos, de ambos os lados do cérebro.
Ao acompanharmos músicas que conhecemos, ou que sejam de um estilo ao qual somos familiarizados, regiões adicionais são mobilizadas, incluindo o hipocampo – o centro da memória – e subseções do lobo frontal, particularmente o córtex frontal inferior.
Acompanhar o ritmo da música, quer em voz alta ou somente em nossa mente, envolve os circuitos de tempo do cerebelo.
A execução musical envolve os lobos frontais para o planejamento, o córtex motor na parte posterior do lobo frontal e o córtex sensorial, o qual fornece respostas táteis.
A leitura musical envolve o córtex visual, localizado na parte mais traseira do cérebro, no lobo occipital.
Ouvir ou lembrar-se da letra invoca os centros da linguagem, incluindo as áreas de Broca e Wernicke, bem como outros centros de linguagem nos lobos temporal e frontal.
As emoções que experimentamos em resposta à música envolvem estruturas que estão nas regiões instintivas do verme cerebelar e da amídala – o coração do processamento emocional no córtex.

Os sábios pitagóricos diziam que o universo é musical. De fato, cada som e cada silêncio parecem ter um efeito especial sobre o ser humano. Seu significado específico pode ser libertador ou não, trazendo alívio, paz, serenidade, ou talvez inquietação. Por isso o excesso de ruídos – a moderna poluição sonora – está longe de ser um problema sem importância.

A música das esferas, de que falavam os pitagóricos, é escutada quando a nossa vida física, emocional e mental está em consonância com o grande processo vital do planeta e do cosmo. “Ora, direis, ouvir estrelas” – escreveu Olavo Bilac, antecipando o desprezo dos céticos. E, no entanto, sabemos que é possível ouvir as estrelas, e que elas não necessitam de palavras para falar. Basta que haja silêncio mental da parte de quem escuta.